Translate

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Modalidades aléticas e mundos possíveis

Thanator, de Avatar

As modalidades aléticas ("alétheia" significa verdade em grego) são modalidades da verdade e da falsidade, são modos como uma proposição é verdadeira ou falsa. Uma proposição ou é possivelmente verdadeira (possível), ou necessariamente verdadeira (necessária), ou necessariamente falsa (impossível), ou contingentemente verdadeira (contingente).

Há uma maneira de elucidar esses conceitos modais por meio do conceito de mundo possível, já usado por Leibniz. Uma maneira informal de explicar o que é um mundo possível consiste em, primeiramente, chamar a atenção para o fato de que o mundo atual, o mundo em que vivemos, por ser atual é possível, mas, de um ponto de vista puramente lógico, é um dos muitos mundos possíveis. O mundo atual não se limita ao nosso planeta, mas inclui tudo o que existe, seja o que for que exista. Um outro mundo possível seria um mundo cuja descrição conteria pelo menos uma proposição falsa no mundo atual. Por exemplo, imagine um mundo em que o planeta Vênus não existe. A descrição desse mundo conteria a proposição "A Terra é o segundo planeta mais próximo do Sol", que é falsa no mundo atual. Um mundo possível, portanto, seria um mundo inteiramente descrito por um certo conjunto consistente de proposições. A diferença entre os mundos possíveis equivaleria a uma diferença nas proposições contidas no conjunto consistente de proposições que constitui a descrição de cada um desses mundos.

Há muita discussão sobre o conceito de mundo possível, tanto metafísica quanto epistemológica. Há quem pense, como David Lewis, que seu uso na elucidação dos conceitos modais implica um compromisso ontológico com a realidade dos mundos possíveis. Ou seja, esse uso implicaria aceitar que todos os mundos possíveis são tão reais e concretos quanto o mundo atual. A expressão "mundo atual", nessa teoria, seria uma espécie de demonstrativo: dizer que uma proposição é verdadeira no mundo atual equivaleria a dizer que é verdadeira neste mundo. Uma das motivações para essa tese metafísica parece ser a teoria da verdade como correspondência. Como explicar as condições de verdade de uma frase como "Eu poderia ser rico"? Ela não descreve como as coisas de fato são, mas modos como as coisas poderiam ser. Isso parece implicar que ela não descreve o mundo atual. Mas se ela descreve verdadeiramente algo e não descreve o mundo atual, então parece que ela deve estar descrevendo verdadeiramente um outro mundo possível diferente do atual. Se a verdade é correspondência entre o que se diz e uma determinada realidade, então aquela frase descreve verdadeiramente um mundo possível diferente do atual tão real e concreto quanto o mundo atual. Portanto, uma paráfrase daquela frase seria: "Existe ao menos um mundo possível em que eu sou rico". Nesse mundo possível existe alguém que é exatamente como eu exceto que é rico.

Esse argumento perderia sua força se a verdade não fosse correspondência, como pensam os deflacionistas. Além disso, esse realismo modal torna difícil entender qual é a relação entre eu e aquela pessoa que naquele outro mundo possível é rica. Se eu e ela não somos numericamente a mesma pessoa, então ao que se refere "Eu" na frase "Eu poderia ser rico"? Se se refere àquela pessoa que vive naquele mundo possível diferente do atual, então estou falando de outra pessoa quando digo "Eu poderia ser rico"? Outra dificuldade que essa teoria enfrenta é uma que frequentemente qualquer metafísica que admita entidades abstratas é acusada de enfrentar. Trata-se de um problema epistemológico geral. Embora os mundos possíveis de Lewis sejam entidades concretas, segundo ele, tal como parece ocorrer no caso de entidades abstratas, não há relação causal entre as coisas de um mundo e as coisas de qualquer outro mundo possível. Ocorre que, aparentemente, a melhor teoria sobre o conhecimento de entidades concretas é uma teoria causal. Conhecemos o mundo atual porque as coisas nele mantêm relações causais, diretas ou indiretas, conosco: elas afetam nossos sentidos. Portanto, como podemos conhecer alguma coisa sobre mundos possíveis concretos diferentes do atual?

Alvin Plantinga também acredita que os mundos possíveis são reais, porém eles não são concretos. Um mundo possível é, para Plantinga, um conjunto maximal de proposições, isto é, é um conjunto consistente de proposições tal que, para toda proposição, ou ela pertence a esse conjunto ou não pertence a ele. Este conjunto seria uma entidade abstrata, não concreta, cujos elementos também são entidades abstratas. A proposição expressa por "Eu poderia ser rico", portanto, seria verdadeira porque a proposição expressa por "Eu sou rico" pertence a um conjunto maximal de proposições diferente do conjunto maximal de proposições que descreve o mundo atual.

Saul Kripke, o criador da semântica dos mundos possíveis para a lógica modal (desenvolvendo um trabalho iniciado por Rudolf Carnap), acredita que o uso do conceito de mundo possível para elucidar os conceitos modais, embora seja conceitualmente útil, não implica um compromisso ontológico com a realidade dos mundos possíveis diferentes do atual. Um mundo possível seria tão somente maneiras de se pensar como o mundo atual poderia ser na sua totalidade.
Os "mundos possíveis" são "maneiras como o mundo poderia ser" totais, ou estados ou histórias do mundo todo. (Kripke, O Nomear e a Necessidade)
Ademais, Kripke não acredita que as elucidações dos conceitos modais feitas por meio do conceito de mundo possível não são definições propriamente ditas:
Não penso nos "mundos possíveis" como algo que forneça uma análise redutiva em qualquer sentido filosoficamente significativo, isto é, que revele a natureza última, de um ponto de vista quer epistemológico quer metafísico, dos operadores modais, das proposições modais, etc., ou que os "explique". (Kripke, O Nomear e a Necessidade)

O uso do conceito de mundos possíveis é útil, segundo Kripke, porque permite interpretar o discurso modal por meio das técnicas conjuntistas da teoria dos modelos da lógica extensional. Mas esta interpretação não implicaria compromisso ontológico com a existência ou realidade dos mundos possíveis diferentes do atual.

Antes de elucidar os conceitos modais usando o conceito de mundo possível, podemos elucidar os conceitos de verdade e falsidade usando esse o conceito.
  • Uma proposição é verdadeira quando ela é verdadeira no mundo atual. Por exemplo: "A Terra é o terceiro planeta mais próximo do Sol". 
  • Uma proposição é falsa quando ela é falsa no mundo atual. Por exemplo: "A Terra é o segundo planeta mais próximo do Sol".
Agora os conceitos modais:
  • Uma proposição necessária (necessariamente verdadeira) é uma proposição verdadeira em todos os mundos possíveis. Por exemplo: "2+2=4". Não há mundo possível em que ela seja falsa. 
  • Uma proposição impossível (necessariamente falsa) é uma proposição falsa em todos os mundos possíveis. Por exemplo: "Este solteiro é casado". Não há mundo possível em que essa proposição é verdadeira. 
  • Uma proposição possível (possivelmente verdadeira) é uma proposição verdadeira em ao menos um mundo possível. Por exemplo: "Brasília é a capital do Brasil". Esta proposição é verdadeira no mundo atual, que é um dos mundos possíveis. Logo, é verdadeira em ao menos um mundo possível. 
  • Uma proposição contingente (contingentemente verdadeira) é uma proposição verdadeira em ao menos um mundo possível e falsa em ao menos um mundo possível. Ou sejam uma proposição contingente é possivelmente verdadeira e possivelmente falsa. O último exemplo serve também de exemplo de proposição contingente. Há ao menos um mundo possível em que Brasília não é a capital do Brasil.
Por meio dessas elucidações, podemos ver que toda proposição verdadeira é possível, embora nem todas sejam necessárias ou contingentes. Toda proposição necessária também é possível. Do mesmo modo, toda proposição contingente também é possível.

A partir das elucidações acima, "É necessário que p" é interpretada como uma quantificação disfarçada, cujo domínio são mundos possíveis, significando que para todo mundo possível w, p é verdadeira em w. "É possível que p" significaria que há ao menos um mundo possível w em que p é verdadeira. "É impossível que p" significaria que para todo mundo possível w, p é falsa em w. Finalmente, "É contingente que p" significaria que há ao menos um mundo possível w em que p é verdadeira e há ao menos um mundo possível w' em que p é falsa.


Leituras

Christopher Menzel, Possible Worlds
Penelope Mackie, Transworld Identity
Ned Hall, David Lewis' Metaphysics
Roberta Ballarin, Modern Origins of Modal Logic
James Garson, Modal Logic
Takashi Yagisawa, Possible Objects

7 comentários:

  1. "Eu poderia ser rico?" Talvez nesta vida, você ainda possa ser; talvez não sejas nunca. Isso se "poderia" significar "poderei";
    e respectivamente significar "estar sendo rico", a resposta seria não,pois não és rico.

    E se em 2+2=4, for num mundo em que 2 não seja 1+1, e 4 não seja 1+1+1+1?

    E se no mundo hipotético, "solteiro e casado" não significarem o mesmo que aqui? Só se houver correspondência de conceitos.

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Como alguém poderia fazer uso referencial de "este solteiro" para atribuir ao referente a propriedade de ser casado?

      Excluir
  3. Pensei nos casos de demonstrativos complexos atributivamente errôneos capazes de fixar com sucesso uma referência. Em certas teorias, a contribuição semântica de "Este F" é idêntica à de um nome, mesmo quando a referência não satisfaz F.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mas quem que compreende "solteiro" e "casado" usaria "Esse solteiro" de forma referencial? Eu consigo imaginar um uso irônico dessa frase, mas então "Este solteiro" deveria ser atributivo.

      Excluir
  4. Essas expressões atributivamente falsas podem ser utilizadas em caso de ironia, correção e referência futura (no caso de a expressão haver sido utilizada muitas vezes no passado - por exemplo, ao fim de uma investigação em que se acreditava inicialmente que a pessoa responsável pelo crime era homem, mas ao final se descobriu tratar-se de uma mulher, e um dos policiais diz "O assassino é mulher"). Mas a minha dificuldade em aceitar "Esse solteiro é casado" tem a ver com o fato de demonstrativos complexos serem designadores rígidos (por conta do pronome "Este"). Parece-me haver uma demonstração de sua contingência:

    1. Esse solteiro = João (Verdadeiro em todos os mundos)
    2. João é casado (Verdadeiro em w1)
    3. Esse solteiro é casado (Verdadeiro em w1; obtido de 1 e 2 por Salva Veritate)
    4. Esse solteiro é casado (falso em w0)
    C.: "Esse solteiro é casado" é contingente (obtido de 3 e 4)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vc acaba de confirmar o que eu disse: o único uso significativo para essa frase seria uma ironia e numa ironia a referida expressão deveria ser atributiva. Portanto não há sentido em que essa frase expressaria uma proposição contingente, salvo se vc tiver uma semântica que determina sentidos inúteis.

      Excluir