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domingo, 22 de outubro de 2017

Sobre a suposta inexistência do altruísmo

Está imagem é ambígua: ela serve tanto para
representar uma pessoa que ajuda apenas a si mesmo
quanto para representar uma pessoa que está
ajudando porque se viu na situação do outro.

Atribui-se a Nietzche a crença de que o altruísmo não existe ou de que certas formas de amor consideradas paradigmas de altruísmo são, na verdade, egoístas. Não quero entrar em controvérsias exegéticas aqui, mas cito uma passagem de Vontade de Potência que sugere vagamente um argumento para essas teses:
Que é o altruísmo cristão senão o egoísmo coletivo dos fracos que descobre que, se todos velarem uns pelos outros, cada um será conservado por maior tempo?
Que argumento se insinua nessa passagem? (Estou supondo que Nietzsche daria uma resposta positiva à sua pergunta.) Primeiramente, egoísmo para ser implicitamente entendido aqui como a qualidade da ação que visa o bem estar de si, a começar pela auto-conservação. Altruísmo seria, portanto, a qualidade da ação que visa o bem estar alheio. Com essas definições, da premissa de que a finalidade última da ação que visa o bem estar alheio é o bem estar se si parece que se pode concluir que a ação aparentemente altruísta é, em última análise, uma ação egoísta.

Sendo de Nietzsche ou não, esse argumento me parece muito ruim. A principal razão disso é a seguinte: esse argumento parece supor, erroneamente, que o altruísmo é incompatível com o interesse no bem estar de si. Se um dos motores da ação é o bem estar de si, supõe-se, então essa ação não é altruísta, por mais que vise o bem estar alheio. Para ver que essa pressuposição é falsa, basta uma pequena reflexão sobre uma patologia incompatível com moralidade: a psicopatia. A principal característica da psicopatia é a ausência ou um grau muito pequeno de empatia, ou seja, do desprazer que surge ao nos colocamos imaginativamente no lugar de outra pessoa, quando essa pessoa está em uma situação desprazerosa, e que nos move para ajudar essa pessoa. Por ter nenhuma ou pouca empatia, um psicopata tem pouco ou nenhum prazer em realizar ações que visam o bem estar alheio, assim como nenhum ou pouco desprazer ao realizar ações que ele sabe ter como consequência o mal estar alheio. Para uma sociedade seja composta de agentes morais é necessário que as pessoas sejam educadas de tal forma que desenvolvam empatia e, por isso, sintam prazer em realizar ações que visam o bem estar alheio. O motor da ação altruísta, da acção que visa o bem estar alheio, é o prazer que se sente em realizar essa ação. Ela não deixa de ser altruísta, de visar o bem estar alheio, pelo fato que o motor da ação é o prazer em realizá-la. Alguém que não sente prazer em realizar uma ação altruísta tampouco sentirá desprazer em realizar uma ação egoísta, ou seja, será, em algum grau, um psicopata.

Alguém poderia objetar que em alguns casos a ação altruísta é realizada a despeito do desprazer que o agente tem ao realizá-la. Por exemplo: uma pessoa que saia no meio da madrugada, no inverno, debaixo de chuva para ajudar um amigo que precisa de ajuda imediata está realizando uma ação altruísta, apesar do desprazer que é interromper o sono, molhar-se todo, sentir frio, etc. Isso é verdade, mas não afeta meu argumento. Essa ação vai ser altruísta apenas se, apesar de todo esse sofrimento, o agente sentir prazer em, por meio da sua ação, promover o bem estar do amigo. O prazer em promover o bem estar do amigo por meio da sua ação e o desprazer que a ação que promove esse bem estar causa não são incompatíveis. O agente do exemplo acima pode muito bem estar batendo o queixo de frio e sorrindo por estar ajudando o amigo.

Ter como motor da ação o prazer em realizá-la implica que o motor da ação é, de certa forma, o bem estar de si. Mas isso não implica que a ação seja egoísta. Ela seria egoísta se visasse o bem estar de si, indiferentemente ao bem estar ou mal estar alheio. Ser o motor da ação tampouco implica que o agente tenha consciência reflexiva desse fato. Se alguém perguntasse para o agente do exemplo acima "Por que você fez isso?", então, se a ação foi genuinamente altruísta, ele provavelmente responderia algo como "Porque meu amigo precisava de ajuda" e não "Porque eu queria me sentir bem realizando uma ação altruísta". O motor da ação não é o mesmo que a sua finalidade.

Disso tudo se pode concluir que, por mais que no final das contas seja a vantagem adaptativa e, portanto, um benefício para os membros da nossa espécie, ser altruísta, como sugere a passagem de Nietzsche, disso não se segue que o altruísmo seja um tipo de egoísmo. O egoísmo se opõe ao altruísmo justamente porque parte dele é a indiferença em relação ao bem estar alheio.

Mas e o que dizer do egoísmo da espécie, que a passagem de Nietzche sugere como uma possibilidade? Bem, ele pode muito bem ocorrer. Argumentos a favor do veganismo são justamente argumentos contra o egoísmo da nossa espécie, a saber, o especismo. Mas ser especista não é algo essencial dos membros da nossa espécie, como atesta a existência de veganos. Alguns argumentam, por exemplo, que não devemos fazer testes químicos em animais não-humanos, mesmo que isso implique prejuízo para a nossa espécie, pois implica que devemos parar de criar medicamentos do modo como atualmente fazemos. Esse é um exemplo de altruísmo não-especista.


Um comentário:

  1. Os maldosos de alma é que buscam diminuir o esforço daqueles que procuram fazer o bem. Assim, eles tentam diminuir a carga negativa de suas próprias ações egoístas! Ig Notus

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