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sábado, 22 de junho de 2019

O quarto de Mary ou o argumento do conhecimento


A metafísica lida com questões sobre a essência (condições necessárias e suficientes para algo ser o que é) e existência das coisas. Uma dessas questões é: "Quais tipos mais gerais de coisas existem?". As respostas a esta questão se dividem em três grandes grupos: teorias monistas, teorias dualistas e teorias pluralistas. Os defensores de teorias monistas defendem que há apenas um tipo mais geral de coisas. Os defensores de teorias dualistas defendem que há apenas dois tipos mais gerais de coisas. Os defensores de teorias pluralistas defendem que há mais de dois tipos gerais de coisas.

A obra de Descartes é o locus classicus de um tipo de dualismo. Descartes acreditava que há dois tipos de mais gerais de coisas, que ele chamava de substâncias: as coisas extensas ou materiais, e as coisas pensantes ou imateriais (mentais). Ele argumentava que dado que pode-se conceber cada uma das substâncias sem precisar conceber a outra, elas eram substâncias distintas (tinham propriedades de naturezas distintas) e cada uma tinha uma existência independente da outra.

Há dois grupos principais de teorias monistas: as teorias materialista ou fisicalistas e as teorias idealistas. Materialistas ou fisicalistas acreditam que existem apenas coisas materiais ou físicas, coisas que estão no espaço e no tempo. Idealistas acreditam que existem apenas coisas mentais. Uma forma radical de idealismo é o solipsismo, a tese de que existe apenas minha mente, que toda a realidade que experimento é conteúdo da minha mente.[1]

Frank Jackson formulou um experimento de pensamento a fim de refutar o fisicalismo. Mary é uma cientista que viveu a vida toda em um quarto onde tudo é ou preto, ou branco, ou cinza. Sendo uma cientista brilhante incomum, ela por hipótese sabe todos os fatos físicos. Ela sabe tudo sobre física, química, biologia e neurociência. Ela sabe tudo sobre como a percepção funciona, desde o funcionamento dos sentidos, o modo como a informação dos sentidos chega ou cérebro e sobre o que acontece no cérebro quando essa informação chega lá. Por exemplo: Mary sabe que ver vermelho é o resultado de objetos refletirem ondas eletromagnéticas de um certo comprimento, essas ondas atingirem a retina do olho, isso gerar impulsos elétricos, esses impulsos serem levados pelo nervo ótico até certa parte do cérebro e lá serem processados. Mas Mary nunca viu nada vermelho. Um dia eis que Mary sai da sua sala e avista um tomate maduro pela primeira vez. Ela então vê vermelho pela primeira vez. A pergunta relevante aqui é: Mary adquiriu um novo conhecimento? Jackson argumenta que, se Mary sabe tudo sobre física, conhece todos os fatos físicos que são objeto das ciências naturais, e adquiriu um novo conhecimento ao ver vermelho pela primeira vez, então esse novo conhecimento não pode ser sobre um fato físico. Mas se esse novo conhecimento é sobre um fato não-físico, então o fisicalismo está errado quando afirma que há somente coisas físicas e, portanto, fatos físicos. E parece verdade, à primeira vista, que Mary adquiriu novo conhecimento. Parece correto dizer que, antes de sair do quarto, Mary não sabia como era ver vermelho. De nada do que Mary sabia sobre os fatos físicos ela podia inferir que ver vermelho era como aquela nova experiência que ela teve. Se isso está correto, então parece que a sensação e suas propriedades que ocorrem na experiência de ver vermelho não são físicas.

Esse argumento é chamado argumento do conhecimento, pois ele procura extrair conclusões metafísicas de premissas epistêmicas, isto é, premissas sobre o conhecimento. O fato de Mary saber tudo o que há para saber sobre o funcionamento físico da percepção e o fato de ela adquirir um novo conhecimento quando vê vermelho pela primeira vez parecem implicar que esse novo conhecimento não é sobre um fato físico, que o conhecimento sobre o que é físico não esgota o conhecimento sobre a percepção, pois haveria fatos não-físicos envolvidos na percepção de coisas vermelhas que Mary desconhecia antes de ver vermelho pela primeira vez. Uma suposição desse argumento é que cada novo conhecimento é um conhecimento de um fato diferente daqueles já conhecidos.

O argumento do conhecimento também é usado para justificar a crença na existência dos qualia. Os qualia seriam as propriedades das sensações que as diferenciam umas das outras. Por exemplo: a qualidade da sensação produzida quando vemos vermelho, a vermelhidão, é diferentes da qualidade da sensação produzida quando vemos azul, a azulidão. Esse é o conhecimento que Mary parece não ter antes de ver vermelho pela primeira vez, o conhecimento do quale de vermelho. 

Alguns argumentam que a hipótese inicial desse experimento de pensamento não expressa uma possibilidade. Mary não poderia não ver cores na situação descrita na hipótese. Muitas coisas poderiam provocar a experiência de ver cores, a começar pela visão das próprias mãos ao manipular as coisas, mas também os efeitos da experiência de olhar para a luz (aberrações cromáticas), efeitos do ato de esfregar os olhos, etc.  Os defensores do experimento então sugerem uma modificação: Mary era fisicamente incapaz de ver cores e, depois algum tempo, uma cirurgia a torna capaz de ver cores pela primeira vez. Para os objetivos do argumento do conhecimento, essa hipótese é tão boa quanto a primeira.

Uma outra suposição do argumento parece ser que se algo é um fato físico, então ele pode ser expresso na linguagem da física. Ora, os qualia não podem ser expressos na linguagem da física, porque, parece, não podem ser expressos em linguagem nenhuma. Não podemos dizer como é a vermelhidão do vermelho, mas apenas dizer das coisas que são vermelhas. Disso se seguiria que os qualia não são entidades físicas. Mas parece que o fisicalista não é obrigado a aceitar essa suposição. Ele pode muito bem argumentar que há fatos físicos inefáveis, que não podem ser expressos em linguagem nenhuma e, portanto, tampouco na linguagem da física, tal como a experiência de ver vermelho. Para um tal fisicalista, os qualia seriam propriedades físicas de coisas físicas: as sensações. Mas, se a experiência de ver vermelho é um fato inefável da física e Mary obteve um novo conhecimento ao ter essa experiência, então Mary não sabia tudo o que há de físico para se saber sobre a percepção. Além disso, o que seria um fato físico se nem todos eles são expressáveis em linguagem da física?

Jackson acredita que o comportamento pode ser explicado em termos the causalidade puramente física. Isso implica que, embora seja causado por eventos físicos, os qualia são causalmente inertes. Ou seja, Jackson acredita que os qualia são epifenômenos dos fenômenos físicos.

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[1] Os trialistas são pluralistas que acreditam que há três tipos mais gerais de coisas. Frege era um trialista. Para ele há três "reinos": o reino (objetivo) das coisas materiais ou físicas, o reino (subjetivo) das coisas mentais ou psicológicas e o "terceiro reino" (objetivo) das coisas abstratas, que não estão nem no espaço, nem no tempo. Este era o reino das entidades lógicas (conceitos, pensamentos, extensões de conceitos, valores de verdade, etc.) e matemáticas (números, formas geométricas, etc.). Frege defendia uma tese logicista sobre a aritmética, ou seja, que todas as entidades da aritméticas, como os números, por exemplo, eram, em última análise, entidade lógicas.
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Leituras

Frank Jackson, O que Mary não sabia?
Frank Jackson, What Mary Didn't Know?
Matine Nida-Rümelin, Qualia: The Knowledge Argument

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