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quinta-feira, 27 de junho de 2019

As interpretações dos quantificadores

Lua e Vênus

Os enunciados existenciais e universais, tais como "Existem baleias" e "Toda baleia é um mamífero", respectivamente, são traduzidos para a linguagem formal do cálculo de predicados da seguinte forma:
"Existem baleias" = ∃x(Bx)
"∃" é o quantificador existencial, "x" é uma variável individual e "B" é o predicado "ser uma baleia". Essa fórmula se lê "Existe ao menos um x tal que x é uma baleia".
"Toda baleia é um mamífero" = ∀x(Bx→Mx)
"∀" é o quantificador universal, "→" é a implicação material e "M" é o predicado "ser um mamífero". Essa fórmula lê-se "Para todo x, se x é uma baleia, então x é um mamífero".

As fórmulas quantificadas apresentadas acima são ambíguas de um modo filosoficamente controverso. Há ao menos duas maneiras distintas e incompatíveis de se interpretar essas fórmulas quantificadas: a interpretação objetual e a interpretação substitucional. Na interpretação objetual, normalmente considerada a interpretação padrão, as variáveis individuais variam sobre objetos de um domínio, restrito ou irrestrito. Por exemplo: se o domínio de variação são os números naturais, então esse é um domínio restrito. Trata-se de um domínio irrestrito quando esse domínio é todo o universo, tudo que há. Os nomes dos objetos do domínio podem substituir a variável para formar instâncias da fórmula quantificada. Por exemplo: se a é um objeto do domínio de variação de x, então o nome "a" (Suponhamos que uma baleia real tenha sido nomeada "Mob Dick") pode substituir x em Bx e gerar a instância Ba da fórmula ∃x(Bx). Ba lê-se: "Mob Dick é uma baleia". Qualquer instância verdadeira dessa fórmula quantificada a torna verdadeira e o conjunto de todas as instâncias de uma formula universalmente quantificada a torna verdadeira, se todas as instâncias desse conjunto forem verdadeiras. Mas, de acordo com a interpretação objetual, não é necessário que a fórmula quantificada tenha instâncias para ser verdadeiras. ∀x(Bx→Mx) será verdadeira se todos os objetos que forem baleias forem também mamíferos. Na interpretação objetual, a fórmula existencialmente quantificada lê-se:
x(Bx) = "Existe ao menos um objeto x tal que x é uma baleia".
E a fórmula universalmente quantificada lê-se:
x(Bx→Mx) = "Para todo objeto x, se x é uma baleia, então x é um mamífero".
Na interpretação substitucional, as variáveis individuais variam sobre os seus substituendos, aqueles termos que podem substituir as variáveis para gerar instâncias das fórmulas quantificadas, ou seja, os termos singulares (nomes e demonstrativos), não sobres os objetos de um domínio. Desta forma, a fórmula existencialmente quantificada lê-se:
x(Bx) = "Há ao menos uma instância substitutiva de Bx tal que ela é verdadeira".
E a fórmula universalmente quantificada lê-se:
x(Bx→Mx) = "Todas as instâncias substitutivas de Bx→Mx são verdadeiras".
Qual é a diferença filosoficamente relevante entre essas duas interpretações? A interpretação objetual implica um compromisso ontológico não implicado pela interpretação substitucional. Uma fórmula implica compromisso ontológico quando sua verdade depende da existência de certas entidades. Na interpretação objetual, a fórmula existencialmente quantificada ∃x(Bx) somente é verdadeira se existir ao menos um objeto do domínio de variação da variável x que for uma baleia. A interpretação substitucional é ontologicamente neutra e joga a discussão sobre o compromisso ontológico para as instâncias da fórmula quantificada. As fórmulas existencialmente quantificadas não possuem compromisso ontológico, segundo a interpretação substitucional. Somente se as condições de verdade de suas instâncias implicarem compromisso ontológico, a verdade de tais fórmulas dependerá da existência de certas entidades.

Vejamos um exemplo exemplo: se a fórmula existencialmente quantificada
x(Dx)
(onde D é o predicado "ser um detetive") for interpretada substitucionalmente, isso é insuficiente para concluir que ela implica compromisso ontológico com a existência de um objeto x de um certo domínio. Se substituirmos a variável x pelo nome "b" = "Sherlock Holmes", então teremos a instância "Db", que lê-se "Sherlock Holmes é um detetive". Somente se as condições de verdade dessa instância implicassem compromisso ontológico, na medida em que tais condições incluiriam a exigência de que o nome "Sherlock Holmes" se refira a um certo objeto, a verdade da fórmula ∃x(Dx) dependeria da existência desse objeto. Sherlock Holmes é um personagem de ficção.

Há um grande debate sobre se a verdade de afirmações sobre personagens de ficção depende de que os nomes de personagens de ficção se refiram a certo tipo de objeto. Se interpretamos os quantificadores substitucionalmente, então não podemos alegar que tais nomes devem ter referência dizendo que não podemos eliminar, por meio de paráfrases, quantificações existenciais sobre personagens de ficção, tais como "Há n personagens em Hamlet". Mesmo que não possamos eliminar, por meio de paráfrases, quantificações existenciais sobre personagens de ficção, disso não se seguiria, por si só, que personagens de ficção existem.

Quine argumenta em favor da interpretação objetual dos quantificadores. Seu critério para compromisso ontológico se expressa na célebre formulação "Ser é ser o valor de uma variável (ligada)".[1] Esse critério depende de uma interpretação objetual dos quantificadores.

Mas a interpretação objetual parece ter uma implicação problemática. Parece ser o caso que
Necessariamente, a estrela da tarde é a estrela da tarde.
Dessa afirmação se segue, por generalização existencial, que
Existe ao menos um x, tal que, necessariamente, x é a estrela da tarde.
De acordo com a interpretação objetual, essa última afirmação deveria ser parafraseado do seguinte modo:
Existe ao menos um objeto x, tal que necessariamente x é a estrela da tarde.
Mas embora seja necessário que a estrela da tarde seja a estrela da tarde, é contingente que a estrela da manhã seja a estrela da tarde, pois há mundos possíveis em que estas descrições definidas não se referem à mesma coisa. Portanto, que objeto é esse que é necessariamente idêntico à estrela da tarde?

Quine vê esse problema como um problema para a lógica modal quantificada[2], não para a interpretação objetual dos quantificadores. Todavia, uma interpretação substitucional dos quantificadores parece acomodar esse caso sem problemas. De acordo com essa interpretação, a referida generalização existencial seria parafraseada do seguinte modo:
Há ao menos uma instância substitucional de "Necessariamente, x é a estrela da tarde", tal que é verdadeira.
E isso é verdade, pois, afinal, "Necessariamente, a estrela da tarde é a estrela da tarde" é verdadeira e é uma instância substitucional de "Necessariamente, x é a estrela da tarde".

Mas a interpretação substitucional também tem seus problemas. Um deles é o seguinte: para que uma fórmula quantificada como esta ∀x(Bx→Mx) seja verdadeira segundo a interpretação substitucional, deve haver instâncias substitucionais da fórmula aberta Bx→Mx. Todavia, Quine argumenta que termos singulares, os substituendos da variáveis individuais, podem ser eliminados da linguagem por meio da técnica das descrições definidas de Russell. Em uma tal linguagem, fórmulas quantificadas não poderiam ser verdadeiras de acordo com uma interpretação substitucional, pois nela não haveria instâncias substitucionais das fórmulas abertas.

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[1] Uma variável é dita ligada quando ela é parte de uma fórmula aberta que está no escopo de um quantificador. Por exemplo: x é uma variável ligada na fórmula ∃x(Dx), porque é parte da fórmula aberta Dx, que está no escopo do quantificador ∃x, delimitado pelos parênteses. Se essa fórmula aberta não estivesse no escopo de um quantificador, como na fórmula aberta Dx, essa variável seria não-ligada.
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Leitura

Gabriel Uzquiano, Quantifiers and Quantification

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