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quinta-feira, 27 de abril de 2017

Externismo, ceticismo e realismo

Hilary Putnam
Ceticismo e realismo 

O ceticismo cartesiano apresentado na primeira das Meditações Metafísicas (o qual Descartes visava refutar nas meditações seguintes) consiste em dois argumentos para justificar a dúvida racional sobre as nossas alegações de conhecimento em dois âmbitos: âmbito das proposições sobre o mundo exterior à mente (argumento do sonho) e o âmbito das proposições matemáticas (argumento do gênio maligno). A estratégia de ambos os argumentos consiste em, primeiramente, mostrar que nossas alegações de conhecimento somente são verdadeiras se soubermos que todas as hipóteses sabidamente incompatíveis com tais alegações são falsas.

A plausibilidade dessa tese é reforçada por exemplos corriqueiros como o seguinte: suponha que João alegue saber que um determinado documento está dentro da mesa da sua escrivaninha. Suponha que Maria tenha dúvidas sobre isso e pergunte a João: "Como você sabe isso?". Ele então responde: "Coloquei o documento ali há poucos minutos". Maria então chama atenção para o fato que se essa alegação de conhecimento é verdadeira, então o documento está dentro da gaveta e, portanto, ninguém o retirou de lá despercebidamente desde que João o colocou lá. Disso parece se seguir que se a alegação de conhecimento em questão é verdadeira, então João deve saber também que ninguém retirou o documento da gaveta desde que foi colocado lá. Se ele não souber que ninguém retirou o documento da gaveta desde que foi colocado lá, então tampouco saberá que o documento ainda está lá.

A hipótese a qual Maria apela na sua argumentação, a saber, que alguém tenha retirado o documento da gaveta, é incompatível apenas com a alegação de conhecimento particular de João. O cético cartesiano, por sua vez, apela para hipóteses que são incompatível não apenas com algumas alegações de conhecimento particulares, mas com todas as alegações de conhecimento de um certo âmbito. No caso do conhecimento sobre o mundo exterior, a hipótese cética é que aquele que alega saber algo sobre o mundo exterior esteja dormindo. No caso do conhecimento matemático, a hipótese cética é que aquele que alega saber algo sobre matemática tenha sido criado por um gênio maligno que o fez de tal forma que não apenas ele acredita sistematicamente em proposições matemáticas falsas como não tem como descobrir o seu engano.

Ambas as hipóteses céticas supõem que é possível que todas as nossas crenças sobre o mundo exterior e sobre a matemática sejam falsas. Mas isso somente é possível se o valor de verdade das proposições que acreditamos for absolutamente independente do nosso conhecimento. Ou seja, as hipóteses céticas pressupõem a concepção realista da verdade. Uma das bases do ceticismo cartesiano é, portanto, o realismo sobre a verdade. Se o realismo sobre a verdade é verdadeiro, então as hipóteses céticas expressam uma possibilidade. Portanto, mostrar que as hipóteses céticas não expressam uma possibilidade implica em mostrar que o realismo sobre a verdade é falso. Isso é o que pretendeu Hilary Putnam quando formulou o argumento cético dos cérebros numa cuba para, a seguir, tentar refutar essa hipótese por meio de sua teoria semântica e, assim, mostrar que o realismo sobre a verdade é falso.

Cérebros numa cuba

A hipótese dos cérebros numa cuba consiste na situação em que um perverso cientista retira o cérebro de alguém da sua cabeça e o coloca numa cuba contendo um liquido composto de nutrientes que mantém o cérebro vivo e em funcionamento normal. Aos terminais nervosos desse cérebro estão ligados fios que partem de um super-computador que envia impulsos elétricos ao cérebro e recebe impulsos elétricos do cérebro. O resultado dessa interação entre cérebro e computador são experiências qualitativamente idênticas àquelas que a pessoa que teve o cérebro removido tinha antes que o removessem. Porém, quando ela tem a experiência de ver uma cadeira, por exemplo, essa experiência não é causada por uma cadeira real, mas pelos impulsos elétricos vindo do computador. Quando ela experimenta erguer o braço após ter vontade de fazer isso, essa experiência não é causada pelo movimento do seu braço, pois ela não tem braço. Ela não tem corpo. Por meio dessa hipótese, podemos formular um argumento cético que tem a seguinte forma:
(1) Se sei que p (onde p é uma proposição qualquer sobre o mundo exterior) e sei que, se sei que p, então não sou um cérebro numa cuba, então sei que não sou um cérebro numa.
(2) Sei que, se sei que p, então não sou um cérebro numa cuba.
(3) Não sei que não sou um cérebro numa cuba.
(4) Logo, não é o caso que sei que p e sei que, se sei que p, então não sou um cérebro numa cuba. [de 1 e 3 por modus tollens]
(5) Logo, não sei que p. [de 2 e 4 por simplificação]
Dado que p é qualquer proposição sobre o mundo exterior, o resultado final da aplicação generalizada desse argumento é que não sabemos nada sobre o mundo exterior. A premissa 2 é uma verdade conceitual incontroversa que simplesmente afirma que uma alegação de conhecimento sobre o mundo exterior é incompatível com a hipótese de que aquele que faz essa alegação é um cérebro numa cuba. A premissa 3 é o resultado do fracasso na tentativa de vencer o desafio cético. O cético pergunta: como você sabe que não é um cérebro numa cuba? Se conhecimento é ao menos crença verdadeira justificada, uma resposta satisfatória à pergunta do cético deveria justificar a crença de que não se é um cérebro numa cuba. Mas o que poderia justificar essa crença?

Uma suposição desse argumento é que alguém que está considerando o argumento possa ser um cérebro numa cuba e pensar que é um cérebro numa cuba. Por meio de uma teoria semântica externista, Putnam procura refutar essa suposição. Ele pretende mostrar que essa conjunção é falsa argumentando em favor da seguinte disjunção exclusiva: ou s (onde s é um sujeito qualquer) é um cérebro numa cuba, mas s não pode pensar que é um cérebro numa cuba, ou s pode pensar que é um cérebro numa cuba, mas s não é um cérebro numa cuba.

Externismo

No artigo intitulado "The meaning of 'meaning", Putnam apresenta, através do experimento mental das Terras gêmeas, a sua teoria semântica, que ficou conhecida como teoria causal do significado. A semântica de Putnam se opõe a uma concepção do significado que parece natural, intuitiva. Parece natural supor que o conteúdo semântico ou significado das nossas expressões linguísticas estão na nossa mente. O significado de "água", por exemplo, parece ser algum estado mental que acompanha o uso da palavra. Dessa forma, se duas pessoas estão no mesmo estado mental quando usam a palavra "água", então essa palavra é usada com o mesmo significado.

O significado também parece determinar a extensão ou referência da palavra. Sendo assim, dado que o significado parece ser um estado mental, se duas pessoas estão no mesmo estado mental quando usam a palavra "água", então essa palavra se refere à mesma coisa em ambos os casos. O experimento mental das Terras gêmeas visa mostrar tanto que o significado não está na cabeça quanto que o que está na cabeça não determina a extensão ou referência de uma palavra.

Suponha que exista um planeta exatamente igual à Terra, com a mesma geografia, a mesma flora, a mesma fauna, os mesmos habitantes humanos, etc. Nessa terra gêmea, existe um Alexandre gêmeo, um ser humano exatamente igual a mim em tudo: mesma aparência, mesmas disposições, mesmo estados e processos mentais, etc. Na verdade, na Terra gêmea há um gêmeo pra cada habitante da Terra. A única diferença entre a Terra e a Terra gêmea é que o líquido que preenche mares, rios e lagos, mata a sede, é usado para cozinhar, regar plantas, transforma-se em nuvens e gelo, ferve a 100 graus centígrados e congela a 0 grau centígrado ao nível do mar, etc., não é constituído de moléculas de H2O, como na Terra, mas de moléculas complexas chamadas XYZ. Nós damos o nome de "água" à substância formada de moléculas de H2O. Os habitantes da Terra gêmea também denominam "água" a substância formada por moléculas de XYZ. A substância formada por moléculas de H2O é diferente da substancia formada por moléculas de H2O. Portanto, "água" nos dois casos refere-se a coisas distintas, têm diferentes referências. A pergunta importante aqui é: eu e o Alexandre gêmeo usamos a palavra "água" com o mesmo significado? Se o significado determina a referência, o significado é um estado mental e eu e Alexandre gêmeo estamos nos mesmos estados mentais quando usamos a palavra água", então essa palavra deveria referir-se à mesma coisa quando usada por mim e por Alexandre gêmeo. Mas como já foi visto, ela não se refere à mesma coisa. Portanto, seja o significado o que for, ele não se reduz a nada que está na minha mente e na mente de Alexandre gêmeo.

Mas o que é o significado? Para Putnam, o significado de termos referenciais é uma combinação daquelas características aparentes (o "estereótipo") daquilo ao qual a palavra se refere e da sua essência ou natureza. A essência ou natureza daquilo ao qual a palavra se refere não está na mente (exceto, claro, se for uma palavra que se refere a algo na mente). Portanto, ao menos parte do significado de uma palavra não está na mente.  A natureza pode ser desconhecida e, por isso, parte do significado de uma palavra pode ser desconhecida daquele que usa essa palavra e necessita de uma investigação para ser descoberta. A palavra "água", quando usada por mim, se refere a uma substância formada por moléculas de H2O porque eu estou em uma relação causal apropriada com essa substância. Ela não se refere a uma substância formada por moléculas de XYZ porque não estou em uma relação causal apropriada como essa substância. Da mesma forma, a palavra "água", quando usada por Alexandre gêmeo, não se refere a uma substância formada por H2O porque Alexandre gêmeo não está em uma relação causal apropriada com essa substância. Por isso, a palavra "água"não tem o mesmo significado nos dois casos.

Externismo e ceticismo

Como essa teoria semântica é usada por Putnam para refutar o ceticismo baseado na hipótese dos cérebros numa cuba? Como foi dito acima, o argumento do cérebro numa cuba supõe que seja possível que aquele que está considerando o argumento seja um cérebro numa cuba e esteja pensando a hipótese de ser um cérebro numa cuba. Sendo assim, se o argumento é cogente, então a seguinte conjunção é uma possibilidade:
s é um cérebro numa cuba e s pensa "Sou um cérebro numa cuba" (onde s é um sujeito qualquer).
O cético supõe que "cérebro" e "cuba" nessa conjunção tem o mesmo significado nas duas proposições que a compõem, a saber, aquele determinado pela relação causal apropriada com objetos exteriores à mente: cérebros e cubas. Mas ao que as palavras "cérebro" e "cuba" se referem na primeira proposição dessa conjunção? Se não somos cérebros numa cuba, estamos falando sobre objetos exteriores à mente com as quais temos uma relação causal apropriada: cérebros e cubas. Mas se s é um cérebro numa cuba, então s não tem uma relação causal apropriada com cérebros e cubas, mas apenas com o computador. Por isso, s não está pensando na sua própria condição quando pensa "Sou um cérebro numa cuba". "Cérebro" e "cuba" não se referem, na frase de s, ao que nós nos referimos quando usamos essas palavras. Por isso, essas palavras não têm o mesmo significado em ambos os casos. Por outro lado, se somos cérebros numa cuba, na primeira proposição da conjunção acima não estamos falando sobre objetos exteriores à mente, pois não temos uma relação causal apropriada com tais coisas. Mas note-se que o antecedente dessa condicional "se somos cérebros numa cuba" é uma tentativa de pensar em uma situação que, se estivermos nela, não podemos pensá-la, justamente porque, se não tivermos relações causais apropriadas com objetos exteriores à mente, então não podemos pensar sobre eles. Mas o cético pretende, como já foi dito, que a hipótese do cérebro numa cuba seja justamente uma hipótese sobre coisas exteriores à mente. Por isso, se não temos relações apropriadas com objetos exteriores à mente, no antecedente "se somos cérebros numa cuba" não estamos pensando sobre a situação que o cético gostaria que pensássemos.

A conclusão a que esse raciocínio parece levar é a seguinte: ou s é um cérebro numa cuba, mas s não pode pensar que é um cérebro numa cuba, ou s pode pensar que é um cérebro numa cuba, mas s não é um cérebro numa cuba. O cético supõe que podemos pensar sobre cérebros numa cuba, entendido como objetos exteriores à mente. Se essa suposição for falsa, o seu argumento não é cogente. Mas dessa suposição somada à conclusão disjuntiva acima se segue que não somos cérebros numa cuba.

Devemos notar que, mesmo que s seja um cérebro numa cuba e, por isso, não tenha relações causais apropriadas com objetos exteriores à mente, suas palavras têm significado determinado pelas relações causais apropriadas com o computador. Por isso, quando s diz que está sentado em uma cadeira em frente a uma mesa, por exemplo, o que ele diz não é necessariamente falso. Tudo depende de se ele está tendo a experiência que ele aprendeu a chamar de estar sentado em uma cadeira em frente a uma mesa.

Dado que a hipótese cética, na medida em que implica a possibilidade de todas as nossas crenças sobre o mudo exterior sejam falsas, não expressa uma possibilidade, o realismo sobre a verdade, na medida em que implica essa possibilidade, deve ser falso. Isso significa que, se não houvesse conhecimento, nossas crenças não seriam nem verdadeiras, nem falsas.

Objeções

Na literatura há objeções à teoria causal do significado, à sua defesa por meio do experimento mental das Terras gêmeas e ao uso da teoria causal do significado para refutar o cético. Para algumas dessas objeções, ver o verbete Brain in a vat argument, da Internet Encyclopedia of Philosophy.


Leituras

Hilary Putnam, "Brains in a vat"
Hilary Putnam, "The meaning of 'meaning'"
Lance P. Hickey, Brain in a vat argument


2 comentários:

  1. Seria o cético capaz de desenvolver logicamente uma armadilha profunda o suficiente para que ele mesmo não achasse uma falha na lacuna? A ponto de se perguntar, até que ponto as variáveis que ele detém não são externas a ele, sendo criadas e continuadas com uma capacidade de não permitirem que ele resolvesse o problema? Talvez assumindo assim o livre arbítrio de seus atos?

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